O homem de bigodinho e óculos de armação grossa abre o pacote de M&Ms enquanto está parado no trânsito na Doutor Arnaldo. São quase sete da noite, e ainda levará um tempo para completar o seu trajeto do serviço para casa.
O farol abre novamente e ele chega a ser o primeiro da fila quando o farol fecha. Mal passam três carros a cada intervalo do cruzamento. O homem de bigodinho bem aparado e óculos de armação grossa escura termina de esvaziar o pacote de M&Ms em sua boca, em um movimento de suspender o pacote aberto sobre seu rosto, como se esperasse cair uma última unidade solta de bala de chocolate. Não cai mais nenhuma. O homem amassa o pacote com uma mão, enquanto a outra solta do volante para abrir o vidro.
Com o vidro à sua esquerda aberto, o homem pode ver pessoas sobre uma plataforma esperando o próximo ônibus que virá pelo corredor de ônibus e os levará morro abaixo pela Rua da Consolação. Enquanto o homem olha as pessoas no ponto, algumas pessoas olham de volta para o homem dentro do carro e se, por acaso, seus olhares se cruzam, ambos desviam os olhares rapidamente, e voltam o olhar para outro foco.
O farol se ilumina verde, indicando que os próximos três carros conseguirão ganhar alguns metros adiante em seu caminho, e o que se passa a seguir é acelerado pela fúria dos motoristas que desejam chegar em casa o quanto antes. O homem engata a primeira marcha. Os últimos pedestres correm para terminar de atravessar a rua. Uma moto passa entre os carros. O homem joga o papel de M&Ms pela janela do carro. O carro à direita avança sobre a faixa de pedestres. O homem fecha a janela e arranca o carro. O carro à direita vira em direção ao carro do homem de bigode, impedindo sua passagem. O homem de bigode pisa no freio evitando uma colisão. O carro que estava à direita segue em frente, desocupando o espaço sobre a faixa de pedestres. O farol fecha.
O homem de bigode espirra dentro de seu carro, sem se mover, e com vidros fechados.
O pacote de chocolate cai no chão, e rola para próximo da guia da calçada.
Esse foi considerado o primeiro caso de gripe suína da cidade de São Paulo.
***
Logo a gripe se espalhou pela cidade. Em diversos pontos de trânsito, motoristas começaram a espirrar, mesmo estando com vidros fechados. Em menos de 72 horas, muitos deles chegaram a falecer. A gripe afetou principalmente homens motoristas, avançados na idade madura.
Curiosamente, a zona leste da cidade foi uma das mais afetada pela gripe. Ruas que eram intensamente trafegadas, como a Radial Leste, passaram a ficar vazias. Os jovens que ainda viviam passaram a ocupar seu espaço com jogos de futebol, vôlei ou taco. Quando de tempos em tempos passava algum carro, eles prontamente chutavam a bola para a calçada e permitiam a passagem do motorista.
Aos poucos, também o Rio Tietê, que cruza a cidade passou a mudar de figura.
Muitos caminhoneiros que passavam por ali foram afetados pela gripe suína, e a notícia correu por outras cidades do Brasil. Não deveria mais se cruzar por dentro de São Paulo. Era muito perigoso. E a estrada que circundava São Paulo foi terminada sob pressão da população. As vias pavimentadas das marginais do rio passaram a ficar vazias, sem os caminhões que frequentavam, sem vendedores ambulantes e sem lixo nas vias. Quase todos haviam morrido. Dali a cinco anos, o rio voltará a ficar frequentado pelos sobreviventes da gripe suína. Peixes começarão a descer até a zona antigamente poluída do rio. Em menos de dois anos depois, voltará a ser potável.
23 maio 2009
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